2 Casamentos

01/11/2020

2 Casamentos 

de Luiz Rosemberg Filho


   A nossa sociedade carrega muitos padrões seculares, que, muitas vezes não são completamente percebidos; ideias não são mudadas com fatos, mas com o tempo, que arrasta consigo sempre um pouco do que existiu junto às novas coisas que propomos. Há no presente ideias passadas, ainda que seja para as mudanças, assim como há a eterna expectativa de ser o que não foi; desta forma, o casamento ainda é uma questão que merece muita atenção, uma vez que é a base da sociedade patriarcal que se estendeu ao longo dos séculos. Hoje, as pessoas têm as mais variadas ideias sobre o assunto, havendo quem acredite que é uma instituição ultrapassada e e sem fundamentos e quem o tenha como maior objetivo de vida, como garantia de uma felicidade que lhe é constantemente atribuída pela nossa cultura. No presente momento, há uma reestruturação dos modelos estabelecidos sobre a sociedade e o casamento está sendo repensado.

A imposição moral à pessoa de passar anos de sua vida com uma única, como prova de amor e, muitas vezes de caráter não cabe mais ao mundo atual. Este, mesmo trazendo um investimento em coisas descartáveis e passageiras, trouxe também como positividade um questionamento maior para o valor e a multiplicidade de opções do que se escolhe para si e, também, uma possibilidade maior de trocar e substituir algo que já não cabe mais. Há uma maior tolerância para erros ao longo da vida e a ideia constante de que se pode tentar novamente. Por isto, este modelo patriarcal está sendo amplamente modificado, uma vez que a ideia das funções definidas para cada gênero, o ideal de uma convivência e um amor eterno e da tolerância como forma de amor deram lugar para experiências que durassem o tempo que fosse necessário para os casais.

É neste contexto que surge o filme Dois Casamentos, de Luiz Rosemberg Filho, realizado em 2014. Apresenta-se claramente como uma crítica às imposições ao padrão do casamento, que, sendo um dever social, torna as pessoas infelizes, o que é abordado através das conversas de duas mulheres, Carminha e Jandira, com conceitos e vidas completamente opostos. Estão à espera de seus noivos e encontram-se em um cenário, que se destaca de qualquer tempo ou espaço, com um fundo escuro, poucos objetos, dentre eles, uma garrafa de vinho que, no início bebem para acompanhar a conversa. Em determinado momento, percebem que este lugar é um estágio diferente da existência humana, atingido por elas após a constatação de que a sociedade vive mentiras. Após perceberem que não são amadas de forma suficiente no casamento, envolvem-se, o que é aprofundado até o último instante do filme. Este se passaria completamente nesta locação se não fosse uma quebra, inserida de uma forma excelente, que foi a utilização de imagens de um negativo de uma cerimônia de casamento, destoando do cenário em que se passa a obra, porém sem fugir ao ambiente próprio e peculiar ao filme.

Este espaço constrói um ambiente de reflexão, como se o mundo parasse por um tempo para que se pudesse analisá-lo, apontando seus erros e desmascarando a realidade. Separa-se o casamento do amor, sendo uma crítica ao esquecimento dos sonhos e dos sentimentos em prol de um sucesso aparente, fazendo com que as pessoas deixem de viver realmente e apenas representem papéis. Os conflitos das personagens são expostos, tanto no abandono destes sonhos quanto nas críticas sofridas por quem não se adapta a este contexto. Luiz Rosemberg traz, em seu filme, questões atuais, aproveitando novas ideias para aprofundar questões intimistas, muito peculiares a seus filmes. Ao dirigir as atrizes, Patrícia Niedermeier e Ana Abbott, indicou que lessem o texto de forma a externalizar o que está escrito e, ao filmar, pediu que refizessem como se internalizassem tudo o que fizeram, desta forma, conseguiram atingir o ápice emocional que chegaram ao final da obra. A sensação do espectador é de verdades ditas sobre uma estrutura, que muitas vezes são ignoradas. Isto compete com a proposta atual dos filmes brasileiros, uma vez que Rosemberg aposta mais em um Cinema que veicula ideias e que busca provocar emoções sobre o mundo.

Sendo o primeiro longa-metragem que o cineasta realiza desde O Santo e a Vedete, de 1982, difere-se muito dos anteriores,tendo mais semelhanças com seus trabalhos como curtametragista, que expõem constatações sobre a sociedade, o meio cinematográfico e o comportamento dos indivíduos. Nestes trabalhos, o cineasta aborda diversos conceitos artísticos que, unidos, transmitem a essência da obra; utilizando várias referências musicais, literárias e cinematográficas, consegue criar com humor ou introspecção filmes que convidam os espectadores a repensarem muitas questões. Dois Casamentos agrada completamente ao público feminino, composto por mulheres que, muitas vezes, se viram obrigadas a se adequar ao modelo patriarcal e representar, muitas vezes, uma imagem diferente do que realmente são.

Em um momento em que os filmes são realizados para atender a uma determinada expectativa do público e, com isso gerar lucro para os produtores e as empresas, o filme de Luiz Rosemberg se opõe a este modelo, com sua proposta autoral em um filme realizado em cinco dias de filmagem, pela produtora independente Cavídeo, de Cavi Borges. Além dos textos interpretados pelas atrizes, a própria realização do filme é uma crítica ao sistema de mercado que banaliza as artes e a liberdade conferida aos autores de trazer questões a serem trabalhadas. A crítica ao casamento vem contra um ideal burguês de formação de sociedade e aparência de sucesso que se atingiria após alguns acontecimentos na vida de uma pessoa. A personagem sonhadora de Ana Abbott encarna o sonho do casamento e o constante ideal burguês de seguir um modelo estabelecido por meios exteriores para atingir a felicidade. As pessoas têm um imenso potencial de vida para serem felizes, porém, estas constantes obrigações com um papel social e, até mesmo a obrigação com um bem estar constante faz com que os indivíduos se tornem apenas representações; como diz o próprio Luiz Rosemberg, "representações baratas da felicidade.

O filme estreou na Semana dos Realizadores, no Arteplex, no dia 26 de novembro, seguido de um debate e com uma sala de exibição de cem lugares completamente lotada. Teve outra exibição em Bagé, sempre emocionando muitos espectadores e gerando elogios ao cineasta, que traz um longa-metragem bem distinto de todo o seu trabalho, em que volta a dialogar com o meio à sua volta, em circunstâncias completamente diferentes. Os textos são envolventes e fortes,

trazendo ecos de Bertold Brecht e de uma construção de Cinema advinda do Teatro, como no início da formação da Linguagem Cinematográfica, aumentando a sensação de atemporalidade, como o próprio filme propõe. Um tema atual, em que são questionados os problemas seculares, em uma linguagem também secular. É, realmente, uma grande obra.


Julhia Quadros – Cinema
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